sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Os Mortos de Letícia


Ela estava impenetrável. Sempre foi assim. E, naquele momento, por mais tenebroso e triste parecesse ser para todos, para ela, somente era mais um sofrimento, mais um machucado que a vida insistia em lhe oferecer. Não podia produzir lágrimas, desde os dez anos não sabia se as tinha. Quando sua mãe faleceu, viu que a vida poderia ser mais difícil que imaginava. Aquele homem a tinha tirado à força de casa, não esperando que enterrasse sua morta, sua mãe. Depois, aquele lugar sombrio e frio, que tinha somente um lençol para os dias tristes e longos do inverno. Seu tio a matou aos poucos, imcubindo-lhe desde cedo a cuidar e realizar todas as tarefas domésticas e, ainda, ser exemplar na escola "Se não, o tal do governo imprica comigo. Como se eu não fizesse muito por uma órfã" Quando dizia isso, uma gosma nojenta saía da sua boca e podia sentir o cheiro do álcool de longe, como se o hálito do ignóbil homem estivesse encostando nos seus lábios. Depois de anos solitários e rodeados por um pânico terrível (que ocorria principalmente à noite, quando Elizeu chegava do mercado e deitava-se com ela, violando seu corpo), Letícia sabia que nunca seria feliz. Aliás, leu uma vez uma frase um tanto verdadeira em um jornal da escola. Era de uma atriz famosa chamada Marilyn Monroe. Ela dizia "Se não foi uma criança feliz, jamais será um adulto feliz". Bem, talvez, fosse verdade, afinal, não sabia o sentido prático, real da palavra felicidade. Depois do tio, veio Ricardo, uma aparente válvula de escape. Parecia ser um homem bom, honesto e apaixonado, um caminho perfeito para sair da casa do tio e encontrar a paz. Ledo engano, mostrou a vida. Quantas traições, concubinas do marido, filhos fora do casamento; quantas brigas e humilhações! E agora estava ali, sem chão, sem nada, enterrando pela quinta vez um dos seus. Por que não eu? Perguntava aflita para o céu, ao acaso, pois não acreditava em nenhuma força milagrosa e criadora no universo. Como poderia existir um criador, que permite o sofrimento de sua criação? Enterrar sua mãe, seu marido e agora seu último filho, não parecia ser sinônimo de uma vida feliz.


Tudo que ela conseguia pensar era no seu morto, naquele corpo frio e fétido que estava na sua frente. Sua barriga estava vazia, inchada, seus braços paralisados, mas todos os vizinhos queriam abraçá-la. Ela cedia. Deixava que todos lamentassem de pena, a olhando como se o mundo tivesse, por aquele único dia, não realizado a rotação para chegar à noite. No enterro, o sacrifício final. A certeza que a carne não existia mais. Que a companhia física estará só nas reminiscências vivas de sua alma. Depois, a volta para casa, a cama que ainda estava desfeita desde a manhã e a sua fiel companheira: solidão, que não a deixava, que a obsediava e exigia atenção. Amanhã será um novo dia. Trabalhará na "Avenida Buena" e novamente ganhará 15 reais para limpar a casa dos Ferreira, cozinhar e cuidar de seus filhos. Com o dinheiro comprará arroz e feijão, e uma goiabada, se restar. E assim, seus dias passarão rápido. Rápido o suficiente para dormir pouco, receber pouco e amar pouco. Lenta será sua dor e solidão, aguardando o dia de sua partida e ansiando por deixar um corpo que só lhe mostrou sofrimento, doenças e uma dor profunda no coração; roubando-a de qualquer tipo de afeição e impondo-lhe a partida dos seus mortos.



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