segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Gabriela, Cravo e Canela: Uma Crônica de Ilhéus.









De pés descalços, cansados, corpo castigado e terra a lhe cobrir, caminha Gabriela, ainda sem cheiro de cravo e cor de canela a lhe expor. Retirante, fugida dos sofrimentos da seca e da dor da pobreza, busca sólido fértil para viver, comer e poder conhecer o sossego; o sossego dos que nunca experimentaram privações. Destino: cidade de Ilhéus; terra em ascensão, de economia baseada no cacau, coronéis tiranos e habitado por pessoas características, típicas, marcadas pela realidade local. "Gabriela, Cravo e Canela", de Jorge Amado, esclareceu minhas indagações sobre o porquê da paixão brasileira (e mundial) por este escritor baiano, de letras bonitas e histórias sensacionais. Não há como não gostar do autor. Em Gabriela ele convida o leitor a fazer uma viagem pela Bahia dos anos 20, em que a política era coronelista, os fuxicos uma rotina comum e a hierarquia social uma lei a ser cumprida, sempre mantendo a mulher como matéria a ser usada, de diferentes formas, mas disfarçadas sob personagens caracterizadas como moral e imoral.







Assim nasceu Gabriela, como mesmo define o autor, protagonizando crônicas de histórias da cidade de Ilhéus, desdobrando inúmeros personagens peculiares e singulares que apresentaram aspectos interioranos e a estrutura da sociedade da época. Gabriela, retirante, sertaneja e muito bela, era dona de talentos gastronômicos, executando com propriedade as receitas mais desejadas da picante culinária baiana. Gabriela, sem estudos ou ciências, tinha o único conhecimento que o turco Nacib (comerciante e bom amigo) buscava: uma boa cozinheira. Assim nasce o amor de Nacib e Gabriela, uma mistura de desejo, ânsia, comida e sensualidade que envolve Gabriela e seu Moço Bonito, seu Nacib. Em paralelo a este inusitado relacionamento entre a sertaneja faceira, bonita e desprendida, com um homem não tão rico, mas de sociedade, a vida se movimenta na sociedade de Ilhéus. Coronéis, padres, beatas, mulatas, jagunços, quengas, moças a se prepararem para o matrimônio e regras a serem cumpridas por tudo e todos definem o dia-a-dia da cidade.


      Ilustração de Gabriela, inserida no cenário de principal atividade econômica da Bahia dos anos 20: a cultura do cacau.




Gabriela, com sua sensualidade latejante e determinante de sua personalidade, objeto de desejo sexual de homens da cidade, não fora criada para ater-se em limites, aliás, nem mesmo fora criada, vontade era seu nome; se sente, faz, se quer, realiza, não mensurando se tais atitudes são maléficas a si e ao outro. Gabriela é distante dos padrões morais dos demais personagens, não sendo imoral nem moral, mas amoral, acima de convenções de determinismos sociais. Liberdade é o que deseja e, se sente vontade de namorar com o Moço Bonito, - seja ele quem for - , que mal há? Afinal, gosta tanto. Nacib teme perdê-la, pressente que ela não nascera para ter dono, mesmo tentanto comprá-la perante cartório, padre e a transformando numa dama de sociedade. Como todo bicho selvagem, seus sonhos são distantes dos domesticados e sua toca, torna-se aos poucos, sua verdadeira prisão. Com o desenvolvimento da vida de Gabriela, são narrados os demais personagens criados para à obra. Mundinho Falcão, disfarçando-se pela vestimenta de progresso, modernidade e diretor de uma "Nova Ilhéus", só deseja apossar-se da cidade, não derramando sangue e organizando expedições de guerra e violência, mas armado de uma política filosófica, sedutora, mas que no fim, era determinada meramente por ele. Diferencia-se de Coronel Ramiro pelos seus modos, educação e por fazer da política uma ciência, não uma chacina.



                               Ilustração da Cidade de Ilhéus por Maurício Melo.



A inserção de Mundinho Falcão na trama encaminha, aos poucos, a uma nova formação social, política e cultural de Ilhéus. Costumes, antes tão defendidos como o assassinato de esposas infiéis, são revistos e definidos como atrocidades e ação criminal, dignos de repreensão e punição legal. A mulher, cuja única função era procriar e ser corpo para cópula, seja como fiel e oprimida dona de casa ou como salutar quenga, que poderia dispor-se aos desejos diversos dos coronéis, é diferenciada por um único papel na narrativa, a inteligente e moderna Malvina, filha do coronel Melk, que nutria dentro de si a revolucionária vontade de ser dona de seu próprio destino. Malvina, diferente das santas ou quengas, queria escolher seu marido, poder trabalhar como todos os homens e não no ofício de dispor seu corpo aos desejos alheios, mas desempenhar atividades coerentes à sua preparação intelectual. Uma verdadeira missionária entre mentes que aprisionavam mulheres somente para o lar, ou encurralavam elas para a prostituição, não fornecendo outros meios de subsistência a mulheres pobres e definidas como "perdidas".






"Gabriela, Cravo e Canela" é, além de uma crônica registrada dos personagens da cidade de Ilhéus, uma narrativa gostosa de se ler, com um linguajar que personifica cada habitante, destrinchando a cultura local, seus hábitos, conflitos, sonhos e suas medíocres rotinas, de mexericos, difamações, de excessivo alimentar e fiéis a cristandade - mas não a ponto de afetar os interesses da carne e do bolso. "O Bataclã", principal bordel da cidade, recebe todas as noites os homens da cidade, solteiros, casados, ricos, pobres, de alta ou baixa sociedade, quem podia pagar e comprar pelo lazer definido pelos homens e pelas suas próprias mulheres como necessidade do homem comum. Tal comportamento, exemplifica a mentalidade e moral da mulher da época, que era educada para aceitar, servir e cuidar da família que o homem formava, mas que a ela não pertencia. Era, no seu íntimo, portadora de um pequeno papel que, em troca de proteção, comida e a dita moral resguardada, tornava-se esposa e mãe dos papéis realmente atuantes: os homens.







Jorge Amado, não restringindo sua obra a um simples romance, desejou torná-la um pouco de tudo, como se estivesse a preparar uma boa comida baiana com todos os ingredientes disponíveis para saciar de várias maneiras o apetite de seus leitores. Através de sua Gabriela, um paradoxo de inocência, virtude, que causa tormentos e questionamentos diversos, é narrada as transformações de uma cidade, demonstrando sua fuga do arcaico ao caminho do moderno, através das mudanças ocorridas no setor político, social, cultural e de relacionamentos. Aos poucos, o novo quadro é formado, discutindo a emancipação feminina, a transição da política mandatária para a política de proposta, de diálogo e semelhante com a modernidade das capitais. No entanto, o que mais interessa ao leitor é a vida local, as pessoas, falas, personalidades, a riqueza de detalhes de cada elemento da trama e como ela critica e, ao mesmo tempo, diverte os leitores, encontrando eles não só uma forma de entreterimento, mas um panorama daquela realidade e como toda a estrutura social educava cada perfil social para viver de acordo com sua posição e classe.







Com tantas características e fusão de perfis diversos, a obra poderia sucumbir-se numa leitura acumulativa, onde muitos personagens e histórias fossem excessivos ao leitor, mas, contrariando as expectativas, à obra, muito aberta e "cheia",  tornou rico o propósito da trama: narrar toda Ilhéus, exemplificar sua gente e, ainda, compreender a fácil e complexa personalidade Gabriela, mulher cuja noção de felicidade não representava a idéia dos demais, que o amor deveria ser, do seu jeito, um livre sentir. Gabriela diferenciava da moça "pura" de sociedade, da quenga "devassa" que em sofrimento vivia a vida que podia e de todas as morais listadas na obra. Personagem tão singular, teve que carregar seu nome como título da obra, perpassando por ela toda cidade de Ilhéus, sua gente, seus dizeres, amores, desamores, dentro de uma história simples e agradável de uma pacata cidade que nos anos 20 viveu, de fato, muitas transformações sociais, servindo de pretexto para criação desta narrativa alegre e incomum, sob o olhar aguçado, divertido e criativo do grande Jorge Amado.











segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O Apanhador no Campo de Centeio.






O livro "O Apanhador no Campo de Centeio", do escritor americano J. D. Salinger estava inserido na minha extensa lista de livros que desejo ler arduamente. Publicado em 1951, li críticas sagazes sobre a obra, desde as opiniões negativas sobre a linguagem da obra, à influência que ela causou na sociedade, de várias maneiras. Conhecido, também, como o livro preferido dos assassinos de John Lennon e John Kennedy, o livro desperta curiosidade em toda a sua formatação, desde a reação dos leitores à obra  ao título da mesma, tão sedutoramente enigmático. Iniciada a leitura, ficou absolutamente compreensível entender e definir o poder de ação do livro. A história é do jovem  Holden Caulfield, dezessete anos de idade, rico, de conduta rebelde e linguagem esculachada. Holden caracteriza-se por ser um jovem imaturo, sem grandes experiências, mas já extremamente cansado da vida que tinha. Possui uma personalidade semelhante a muitos jovens, principalmente adolescentes. Para ele a vida era uma tremenda de uma hipocrisia. As pessoas, à escola, sua família, sua vida, em tudo podia listar (em excesso) características negativas, definindo tudo e todos por um prisma obscuro, falso e doente. As únicas pessoas do seu mundo de negações que via com certo otimismo era sua irmã caçula, Fhoebe e os  irmãos D.B e Allie, este último sempre em remotas e profundas lembranças, já que falecera na infância.






Toda história de Holden é contada a partir de seus pensamentos e ideias sobre um mundo que detestava: sua realidade. Estudante de uma renomada instituição para formar garotos de classe alta, o "Pencey", Holden se prepara para deixar à escola por ter sido reprovado em quatro matérias. Não fora a primeira vez. Já havia sido expulso de outras instituições de ensino, ratificando ser dono de um comportamente inadequado e inadaptado as burocracias e tendências da época. Tudo lhe afligia: a hipocrisia das pessoas, a necessidade do luxo e dinheiro, o isolamento e solidão das instituições de ensino e até mesmo a arte, o cinema e a atuação, que considerava um mundo de ilusões e falsidade. Detestava, sobretudo, a exclusão que ocorria nas instituições que estudava. Toda visão de Holden sobre as coisas, o mundo, é apresentada quando decide deixar à escola e fica vagueando pela cidade de Nova York, em cortiços, com pessoas com todos os tipos de comportamento e vícios, prostitutas, alcoolistas, em que todo seu tempo era empregado para beber, fumar e libertinadamente tentar viver sua sexualidade. Holden não é um santo. Longe disso. É  um jovem fora das leis morais e éticas impostas pela sociedade. No duro (linguajar tão apreciado por ele mesmo) era um ser humano cheio de vícios, corrupções e desejos que prejudicavam a ele e aos outros. Era mais próximo de nós do que qualquer personagem irreal e romanesco.







"O Apanhador no Campo de Centeio" narra a dificuldade de crescer e a negação do personagem a esta nova vida, a adulta. A música ou conto de que gostava "Apanhador no Campo de Centeio" era a única vontade que nutria na vida. Sua ideia de felicidade era ser uma apanhador no campo de centeio e segurar as crianças que pelo campo corriam, a fim de que elas nunca caíssem no abismo (vida adulta). O próprio Holden, a partir desta parábola, revela seu desejo de não crescer, não adaptar-se ao mundo e não seguir todas as regras. A transição da adolescência para vida adulta representava para ele uma horrível passagem e a vida adulta, uma futilidade e hipócrita forma de viver. Holden, de maneira impressionante, não comportava-se com rebeldia na exteriorização de suas palavras. Sua mente era rebelde, mas nunca conseguia dizer algo terrivelmente febril a alguém. Uma contradição em pessoa.






Usando uma linguagem inovadora e perniciosa à época, apresentando as angústias e vícios de um jovem, o sexo sem compromisso com a opinião pública e as normas, e o mais profundo vazio e desesperança de um adolescente que, apesar de ainda não ter vastas experiências, já encontrava-se sem sonhos e perspectivas, "O Apanhador no Campo de Centeio" tornou-se livro universal pela similaridade com o homem e não com seu tempo. É uma obra atemporal. A adolescência e as crises que nela os jovens enfrentam para fazer o rito para fase adulta e os limites e dificuldades que a mente e a personalidade enfrenta para fazer-se forte e madura, ainda, está presente em todas as gerações. Salinger, com um texto cínico, provocativo, esculachado, absolutamente informal criou uma obra - apesar de uma linguagem aparentemente despretenciosa - complexa e única, em que por mais que o leitor não se identifique e compactue com as atitudes de Holden, não consegue não acompanhar o personagem, desejando a cada capítulo saber qual será o fim da jornada deste jovem tão pernicioso e infeliz, mas cheio de dilemas e buscas, como todo ser humano.






Em um mundo cada vez mais capitalista e segregário, vazio em suas buscas, que gera neuroses e angústias profundas para o ter e ser, " O Apanhador no Campo de Centeio" sintetizou e sintetiza a sensação de vazio que muitas pessoas ditas modernas abrigam, em que os sonhos, vontades e felicidades não representam a realidade, a existência do indivíduo. Um livro complexo, penetrante, com personagens moralmente pobres, em que a curiosidade sobre o comportamento dos personagens vigora durante a narrativa  e o (talvez) repúdio ao mundo estranho, imoral e medíocre de Holden acompanha o leitor pela obra. Um pobre garoto rico perdido em seu próprio mundo de mazelas, nos deixando com a sensação que muitos são os Holdens que ainda vivem na sociedade.








quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Seu Nome Era Comum.




 "Os Retirantes", de Cândido Portinari, 1944.



Seu nome era comum, todos sabiam e partilhavam
Tinha uma casa pequena onde vivia e pouco descansava
De dia saía cedo e à noite para casa voltava
Com muito cansaço no corpo e os desgostos que passava



Nutrindo o orgulho ferido e o medo de "chibatadas".
Era uma época estranha, época de escolher candidatos
Candidatos para um tal de Legislativo
Que organiza todo o Estado.



De política nada entendia, mas sabia de sua parcela
Pagava imposto mensal para manter sua bagatela
Do trabalho, não se ausentava, mesmo não tendo bom ordenado.
Ordenado que comprava pouco e lhe dava apenas um punhado



Médico, dentista e professor, só quando o Estado dava,
Pois o punhado que tinha, mal lhe vestia e alimentava.
Educação, saúde e cultura, já tinha ouvido falar
Nas aulas que assistia na escola, antes de labutar



Mas não tinha muito estudo, pois de um tudo faltava
Por isso mal escrevia, pouco conhecia ou  falava
Agora tinha que votar, um voto para Prefeito e um para Vereador
Novas leis criariam para no município determinar



E para as mãos desses homens seu punhado iria parar.
De seu punhado, disseram, que iriam usar:
Para fazer hospital e escola para lhe auxiliar
Assim não veria mais filhos morrer, não



Pela falta de médico e remédio que carece toda nação
Seu filhos iriam estudar e na escola aprender.
Já passara por tantas idades que já sabia votar
Votou tantas vezes que desistiu de esperar,



O tal do Prefeito que prometia tudo mudar
Criando dignidade e trabalho para ofertar.
Já lhe disseram tudo, prometendo novo mundo,
Habitação, estudo e o surgimento de nova condição.



Já sonhou ter sossego, sem medo de perder emprego
E não ter que pedir esmola ou roubar seu pão.
Mas o tal do Prefeito e Vereador que sempre vota
Promete vida de glórias, melhoras e evolução



Mas quando vira Senhor Prefeito, se tranca na sala
Não abraça mais o povo e cumpre nada, não.
Então, se faz mais quatro anos.
Mais crimes e revoltas e desassossegos



Escolas sem livros e mais gente pedindo arrego.
O tal do Prefeito só fala e o Vereador, trabalha, não.   
Só escrevem leis que exigem da população.
Do povo que até abraçou para pedir votos



Visando ser eleito e manter o seu mandato
Para tirar do povo subtrair seus espaços.
De tanto trabalhar não tinha mais esperanças, não
Não acreditava que voto podia mudar uma nação



Muito menos das melhorias que para ele falavam
Garantindo que pelo voto se exercia a liberdade.
Seu nome era comum, todos sabiam e partilhavam
Chamava-se cidadãos e impostos pagavam



A fim de garantir um mínimo que sempre acreditara
Daria dignidade de  vida àqueles que amava.
Já era tempo de voto e não sabia em quem votar, não
Sua esperança era apenas de manter seu pão.



Educação, cultura, saúde, não sabia o que era
Mas sabia que esse tal de voto, nunca lhe trouxera.
De dia trabalhava, de noite pouco descansava.
Para ganhar um punhado que muito não ajudava.



Lhe disseram que a lei obrigava a votar para ser cidadão
Que era precisa votar para consertar a nação.
Agora chegava à eleição e dele lembrava
Não para melhorar sua labuta ou melhorar sua jornada,



Mas para garantir o tal do voto que faria um senhor Prefeito
Que mandaria na cidade e determinaria seus direitos.
E o manteria no local que a sociedade lhe pusera
De pobreza e exclusão, sem privilégios e acessos.



Que vida sofrida, cumprida e danada!
Sem fins nem meios de decidir sua jornada
E bem que ouvia falar numa tal de democracia,
Que dizia que era o povo que tudo decidia.