domingo, 17 de março de 2013

O Espelho de Alice.





                                             Garota no Espelho, 1954,  
                                            Norman Rockwell.



Próximo à janela, um espelho de tamanho mediano e caracteres antigos demonstrava a imagem estranhamente nova daquele rosto que o mundo ainda definia como jovem, mas que sua dona o via impregnado de marcas, achados e experiências não vividas na prática, mas sentidas com a intensa paixão dos passionais, dos que temem os passos com medo da desilusão. Tantos dias passados, horas esperando e rostos vistos e prontamente arquivados como dias que já não fazem parte da realidade, tornando-se, em fração de segundos, em imagens para se lembrar e não esperar. Um espelho tão mediano, tão pequeno que mostrava os anos acabados, os impactos deixados e as marcas físicas do corpo da jovem Alice, que, aos poucos, dava adeus à juventude; medrosa de não tê-la vivido, amado e sentido com a plenitude de ser viva, jovem e aberta a cometer muitos erros e poucos e medíocres acertos. Seus olhos já não mais brilhavam e seu corpo se aproximava da velhice. Teve trabalho, tristeza, buscas, alegrias e dilemas sempre a lhe maltratar. Na sua pele de moça, foi reflexiva, medrosa e ansiosa pela espera do novo, diferente, do convidativo e da ideia da realização pós-juventude. A realização de ter visto, vivido e sentido de tudo um pouco, visando fornecer à sua nova jovem velhice a sensação de prazer, a fim de enganar a tristeza de que a vida passa, mas com tanta experiência adquirida, nunca será uma fonte de lamentação (não houve desperdícios).








De pés descalços, pele levemente enrugada e sonhos ainda a serem realizados, Alice, tão jovem e sentindo-se tão velha, insistia em deixar sua face naquele espelho velho, que não mentia, iludia e não amenizava novas e velhas verdades. Uma jovem tão enigmática e estranha que aos poucos fora conceituada pela sociedade como idiossincrática. A jovem velha observou, com tamanha perplexidade, que todos os sentimentos, sonhos e desejos da sua juventude foram embora, sem precisão, sem justificativa e consideração por ela, como se fossem amigos de longa data que mudaram-se para outro continente, sem ao menos deixar endereço ou qualquer localização. Mas, de todas as formas existentes de sentir, apenas uma ficou a lhe acompanhar: o medo. Medo de ter feito pouco, medo do amanhã, medo da insegurança da vida física e de sentir o amor tão próximo que a decisão de mandá-lo embora parece ser mais segura do que o medo de vê-lo partir todos os seus (ainda) poucos sonhos e ideais. Alice, perto de sua dita velhice, continuava a se olhar no espelho, questionado sua pequena vida, seus feitos e afazeres e se, dentro de tanta mediocridade, chegara perto de realizar algum projeto significativo, abraçou alguém com verdade e se teve a oportunidade de ser melhor, bondosa ou até mesmo esperançosa de dias melhores para si e para o mundo.








Mas, por mais que continuasse a se olhar e refletir o seu breve e improdutivo passado, nas reminiscências de sua alma, não conseguia visualizar nenhum dado que confirmasse suas indagações sobre seu próprio mundo interior. Seu espelho, tão encantadoramente clássico e antigo, insistia em lhe mostrar o único sentimento que governava sua vida: o medo de ter feito de sua própria vida, um grande boneco de fantoche manipulado pelo mundo, que movia-se quando os outros queriam, sentia quando era necessário e desejava tudo o que já fora planejado; não nascido de sua vontade de ser, ter e viver. Alice, perto de sua velhice, descobrira algo que poucos conseguiam entender antes de transitar por qualquer fase: que não exisitia nada novo, os conhecimentos eram sempre os mesmos, os padrões morais frutos da ignorância dos homens e que seus próprios sonhos eram produtos sociais de um sistema capitalista. Profissão, união, trabalho e todas as atividades exercidas, não passavam de tarefas impensadas, decoradas e formuladas para o funcionamento coletivo do mundo.








De todas as ilusões, nada era mais cruel e penetrante do que o fato de ser pouco no mundo. Uma protagonista sem ter participado de nenhum ato. Como era revelador aquele espelho, tão objetivo e preciso em suas verdades. Na verdade de mostrar os segredos daquela face da jovem velha Alice. Alice, tão velha sempre fora, nunca aceitara ser jovem, por isso, chegar à sua velhice não era mais novidade, mas apenas uma extensão do próprio ato de ser no mundo (a escolha que fizera desde o momento que entendeu que tinha uma vida e o que deveria fazer com ela). De tanto pensar, mal percebera que o sol já tinha se guardado para a outra parte do globo e que à noite havia chegado. Acendeu à luz, tornou-se a se olhar, questionou o mundo, tudo e cada observar. Nada lhe foi dito; somente marcas novas no rosto, seus olhos sem brilhar e um corpo que revelava que a vida passava aos poucos, mas não deixava de avisar os tempos perdidos, passados e todos os erros de uma história. Já cansada, levantou-se para outras tarefas realizar, arrumou seu espelho na parede, abriu a porta do seu quarto e, ao voltar seu rosto na esperança de alguma resposta, seu espelho refletiu sua imagem mais uma vez, deixando na jovem Alice a grande indagação de sua jovem velhice: "será que vivi tudo e certo?". Ao fechar a porta, apenas um espelho mediano de caracteres antigos iluminava o quarto.