sábado, 19 de março de 2011

O Domingo Chuvoso de Clara.







Era uma manhã fria de domingo, o vento estava forte e a chuva anunciava sua vinda e, só por isso, o dia já estaria definido como perfeito por Clara, afinal, dias chuvosos, deixavam o céu acinzentado, o vento desordenado e trovões cantavam por toda parte. Clara, era assim: singular. Via beleza no que os outros definiam como estranho, pedia frio ao invés do sol e adorava ficar horas calada, no silêncio, lendo, questionando e extraindo questões inimaginavelmente incalculáveis da vida. O dia frio, a escolha de um novo livro para iniciar uma leitura e um vídeo no final do dia (de preferência "O Mágico de Oz") era um sinal de domingo perfeito. Na sua estante, dúvidas cruéis: iniciar a semana com palavras romanescas, através de Jane Austen, ler mais um livro Shakespeariano ou entregar-se a mais uma história policial com Agatha Christie. Clara não sabia. Naturalmente, isso sempre ocorria; a escolha de um novo livro, achava Clara, era tarefa minuciosa, ainda mais pela quantidade de livros não lidos que ela insistia em comprar, mesmo não tendo tempo correspondente para ler. Coisa de bibliófila. Mas naquele dia, Clara não conseguia escolher. Algo estava errado. Não no seu apartamento, no seu quarto desarrumado e na geladeira - que mais uma vez, estava contendo só água e chá, já que Clara sempre se esquecia de comprar alimentos. Algo estava errado, mas não era fora. Era dentro. Havia muito tempo que sua realidade não correspondia com seus sonhos. Geralmente, isso acontecia com todos, mas para Clara, como muitos, era desolador, pois não conseguia lidar com seus fracassos.
 



Sonhava com um bom emprego, que estimulasse a alma, que pudesse conviver com a intelectualidade e inteligência dos que buscam refletir e sanar indagações maiores, surgidas do verbo ver, sentir e agir. Clara não o tinha. Seu trabalho burocrático, com colegas distantes de todo estímulo que a mente pudesse vivenciar para evoluir e o tempo, que cada vez mais passava como suas adoráveis tempestades: rápido e frio, a deixava vazia, com a ideia de que sonhar, era coisa besta, inventada por alguma parte reprimida da mente que gostava de castigar o indivíduo social. O relógio bateu 10:30 da manhã, seu estômago estava vazio, doendo, mas não tinha forças para preparar nada para nutrir seu organismo. Ultimamente estava assim, semelhante a uma personagem pessimista, fraca e melancólica dos livros que tanto amava de Dostoiévski. A vida, não se materializava com o que planejara e, por isso, Clara não tinha desejo de melhora, vontade de buscar ou, até mesmo, de adaptar-se a sua realidade, tentando ver beleza naqueles dias quentes, no sol odioso e nas tardes em que pouco produzia conhecimento, aplicando sua força de trabalho só para ter uma remuneração no fim do mês. Clara queria mais, mas não sabia por onde iniciar. Desejava muito, inclusive a escrita e arte, a ciência e a magnitude de uma vida serena, calma e reflexiva.





Viver só, depois de concluir sua graduação, não a auxiliou muito. A solidão despertava desânimo e o silêncio a invadia profundamente, mas, tinha que ser assim, pois quando se encontra nos parentes e no mundo mais antipatia do que simpatia, é necessário um caminho pela  busca da harmonia, mesmo que ele seja só.  Não gostava muito das pessoas, mas adorava animais. Um terrível pecado, diziam muitos; mas para Clara, receber um carinho de uma animal, que nem sabia quem ela era ou pretendia ser no mundo, era o sinal mais sincero de amor e respeito ao próximo; coisa estranha que se pedia nas instituições sociais, era inserido na educação dos filhos, mas que, genuinamente, era característica desses seres "inferiores". O tempo corria, e ela continuava no sofá, imune a qualquer barulho e sem vontade de nada. Via seus livros na estante e lembrou-se que ainda não comprou os livros de Salinger, de Dickens e alguns mais de Shakespeare, que tanto adorava.  Não resistindo mais lutar contra o seu estômago, Clara tomou seu último chá de canela, que estava maravilhoso naquela manhã de chuva! Decidiu que iria escolher um livro e levantou-se do sofá. Ao tocar nas páginas de um romance contemporâneo, bem distante dos clássicos almejados ao acordar, ouviu sua campainha; era o porteiro lhe trazendo uma caixa decorada com tons azuis. Era de seu pai e lhe enviara um livro de História da Arte e um doce, que ela tanto amava! No final da caixa, uma bela surpresa: um livro de Charles Dickens, que tanto queria pela manhã, estava na sua porta, quase na hora do almoço. Agradeceu. Trancou sua porta. Sua leitura, finalmente, já estava obrigatoriamente decidida. Já podia sorrir amenamente e sentir que nada era tão ruim quanto pensava.





Mesmo com sua melancolia natural, ela decidiu que iria ter um dia feliz, aproveitando sua chuva, saboreando uma sopa e lendo seu Dickens. Quem sabe, mais tarde, não pintaria um pouco, ligaria para um amigo e escreveria um novo capítulo do livro que sonhava em publicar, mas, por enquanto, só da chuva permanecer com mais força e o frio se fazer entrar, Clara já agradecia e via que tudo poderia ser mudado, apenas com a mudança de seu pensamento, já que este se imprimia no seu exterior. Ao abrir a página do livro, uma mensagem do pai, com sua letra disforme e grande, apresentava-se na página  "Não há felicidade que não ocorra com um forte desejo e não há uma infelicidade que permaneça com a negação dos que sabem amar e viver a vida, seja ela sobre a condição que for". Clara sorriu; abriu seu livro e percebeu que era  a narrativa da "Pequena Dorrit", a menina de vida triste, pobre, mas que soube amar e colher suas felicidades e nunca reclamar da vida. O sábado, certamente, seria ótimo!




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