sábado, 13 de dezembro de 2014

Germinal de Émile Zola

   
                                              



Nas minas de carvão Voreux, localizadas numa cidade francesa, trabalhavam arduamente homens, mulheres e crianças, sem distinção de cor, idade ou disposição. Condicionados as necessidades da carne e da sobrevivência, lançavam-se diariamente ao martírio de serem mineiros e fazerem ricos os patrões e a eles mesmos, operários, mais pobres a cada dia. Despertavam pela madrugada e como bichos enfiavam-se debaixo da terra, a metros de distância do solo preenchido de vida, germinação e belezas. Como bichos, cavucavam a terra, suavam pelo calor excessivo que maltratava o corpo e não sabiam como aguentavam, como se a pele pobre e decaída, soubesse que não havia outra saída, a não ser aquela, de viverem como minhocas, em troca de uma miséria de vida e comida que nem pesava o estômago.




Percorriam horas prolongadas debaixo da terra, andando pelas galerias abertas, condicionando seus corpos a exercícios sobre-humanos para produzirem para seus patrões (capitalistas viventes do suor humano) e depois subiam a face da terra, vendo à noite que os tinham levantado na madrugada e voltavam para o Conjunto Habitacional, moradias desgraçadamente forjadas de casas, anexas as minas de carvão, uma mentira de casa inventada pelos senhores capitalista como vestígio de uma pseudo dignidade humana, que afirmavam descaradamente fornecer aos mineiros.



No Conjunto Habitacional, lugar que chamavam de casa, dormiam fatigados, dividiam o lugar que denominavam serem leitos, num cubículo de espaço tão minúsculo que sentiam seus corpos em comunhão. O calor impregnado em seus corpos misturavam-se com a sujeira não removida pelo banho escasso de baldes. Dormiam, sem poderem realmente descansar, num sono doído, com seus corpos pesados do trabalho e a barriga vazia, cheia de fome e o dinheiro que ganhavam não conseguiam nem se alimentar. Uma miséria de renda dada a cada um dos operários que, no fim, quando unida, não alimentava toda família e ainda deixava as crianças a chorar, de tanta fome e dor que tinham desde que se entenderam por ser parte daquela gente.




Na casa dos Maheu, o quadro de pobreza e crescente miséria, que adoecia aquela gente já destinada ao perecimento, fazia-se gradativa, como se fosse um símbolo de todo grupo de mineiros condicionados àquela situação quase não definida por letras ou ciência, em que o homem subjuga o homem de tal forma que pouca noção de humanidade ou racionalidade restam sobre no subjugado, adoecido de fome, de dor e pelo sistema de classe bem delimitado de mandatário e oprimido.




No sistema rentável de mineração, em que os ricos ficavam mais ricos e os pobres mais pobres, não havia pudores ou pauras. Todos eram atingidos. Crianças no andar de suas infâncias eram lançadas ao trabalho, educadas como produtos para produzirem, cobradas por terem sido alimentadas por tanto tempo sem produzirem. Meninas, sem mesmo entrarem na puberdade, eram obrigadas a darem seus corpos ao sistema: como operárias, trabalhando com a força de homens e seus sexo, estupradas, usadas e manipuladas pelo prazer do outro, como se fêmeas servissem para saciar a vontade de seus machos e, ainda, recebedoras de violência física, quando seu companheiro ou amante assim quisesse, apenas para expor o ódio intrucado pela fome e segregação.




Em meio a promiscuidade, fome, miséria e sujeira aquele bando de gente viviam como bichos. Amontoados de bichos que serviam a um único condutor. Um sistema de gado. Sem voz, fala, levando seus corpos subnutridos para o trabalho que enriquecia poucos e mantinha dezenas numa miséria degradante que distanciava àquelas pessoas de qualquer coisa que identificasse ser vida. Nesse amontoado de insalubridade, o jovem forasteiro Etienne surge como um ventilador que levanta novas ares. Possuído de informações, razões e motivos que poucos conheciam, lança a semente para uma nova forma de vida: revolução do povo para o povo, em que as ideias de Karl Marx não eram absurdas, mas uma possibilidade de se verem como povo e como gente que poderia viver e não mais sobreviver deste sistema de matança velada que era o capitalista contra o proletariado.




Essas novas ideias, como sementes em germinação, levantaram o povo, o levaram a outro patamar e iniciou-se uma revolução social entre os mineiros, depois de germinarem dentro de si a vontade de um novo tempo!




E, deste novo sistema de luta e germinação, nasceu "Germinal", obra do escritor francês Émile Zola que destemidamente passou 02 (dois) meses entre mineiros de uma mina de carvão, na França, para compor essa obra que germinou em mim, leitora e, sem dúvida, em todos os leitores que tem contato com esta obra, uma nova forma de ver a literatura, a escrita e a vida! 




Germinal é uma obra indescritível, penetrante e nenhuma resenha ou consideração pode ser realmente boa para descrever a genialidade de Zola ao escrever sobre a pobreza dos homens (a moral e material), a fome, a descrença e o sofrimento em um estágio inimaginável para a vida de um ser humano. As criminalidades em decorrência do sistema capitalista, a luta de classes e o homem, imbuído de fome e revolta por dar à sua vida em favorecimento aos burgueses, enquanto morriam gradativamente, resulta não só na concepção de naturalismo e realismo literário, mas na criação de uma obra que é arte, denúncia, política, história e sumamente humana. Tão humana que nos deixa fragilizados pela falta de humanidade com a vida humana.






domingo, 27 de outubro de 2013

Opinião: Programa Mais Médicos.




 
 "O programa do Governo "Mais Médicos" visa, através da inserção de médicos nas unidades de saúde do país, fornecer melhorias no sistema de saúde que, precário e inadequado, perece e desassiste à população".



O programa "Mais Médicos" implantado pelo Governo Federal, nasceu da extrema necessidade de oferecer a todas localidades da nação, acesso à tratamentos e assistência médica, a fim de assistir de forma digna e correta à população brasileira. O projeto, urgente e relevante para reverter a atual demanda de atendimento dispersada pelo país, apresentou-se como ferramenta de mudança diante a ineficácia do atual sistema de saúde que, escasso de profissionais e estrutura física, inviabiliza o ideal atendimento à nação.





O projeto, de acordo com o Governo Federal, visa fornecer aos municípios, médicos e estrutura adequada para que os profissionais de saúde exerçam com qualidade, técnica, precisão e conhecimento as atividades denominadas "atendimento em saúde". Ou seja, fala-se aqui, não só de médicos, mas de inserir nos sistemas de saúde profissionais de diferentes formações como, farmacêuticos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc. Fala-se, também, na criação de estrutura física como laboratórios, áreas cirúrgicas, farmácias e medicações em quantidade e variedade para atender diferentes diagnósticos; fala-se em amplo atendimento no âmbito da saúde.




Ante exposto, o programa "Mais Médicos" é um programa relevante, necessário, inteligente e social, visto que oferecerá dignidade de vida humana, como determina à Constituição, aos cidadãos. Ocorre que este projeto, no papel, apresenta-se belo e social, na realidade, com inúmeras dificuldades para sua esperada efetivação. O Governo, a princípio, formulou o programa com a inserção de médicos, acompanhada de infraestrutura adequada para viabilizar nos municípios, hospitais e unidades de saúde com estrutura viável nos atendimentos de urgência, emergência, acompanhamento, promoção de saúde e tratamento, mas, apesar de alguns profissionais já terem sido inseridos em regiões precárias e carentes, a infraestrutura física nas unidades de saúde não estão sendo construídas, a fim de receber os profissionais já encaminhados para alguns municípios.





Os médicos, estão sendo contratados, mas se ausente continuar a estrutura adequada para que todo tratamento iniciado após a prescrição possa ocorrer, o país terá mais médicos, mas não absoluta solução. O profissional médico, extremamente importante, estará na unidade de saúde para prescrever o tratamento adequado ao cidadão, mas haverá, também, a medicação prescrita para o diagnóstico? Terá centros cirúrgicos para doenças que exigem intervenção cirúrgica? Haverá a disponibilidade de centros laboratoriais e profissionais competentes para realização e emissão de exames que auxiliam o diagnóstico e o prognóstico de doenças?


"Em grande parte do país, a realidade de atendimento no âmbito da saúde é extremamente precária. Faltam médicos, infraestrutura e qualidade. E o Estado, negligente e corrupto, não efetiva meios para sanar a problemática".



Se o programa se restringir no contrato de mais médicos e não for acompanhado de uma mudança significativa em todo sistema de saúde, o problema não se solucionará, apenas o Governo estará aplicando uma alternativa paliativa (ineficaz, no caso) para mostrar à população que possivelmente o atendimento em saúde, tão solicitado e exigido como a Educação, será melhorado, mas nos hospitais só teremos mais médicos que, identificando as nossas necessidades orgânicas, não poderão fazer mais do que prescrever o tratamento e desculparem-se, visto que o Governo os contratou, mas não criou meios para eles efetivarem o que estudaram para fazer. Descaso com o povo, descaso com o sistema e descaso com esses profissionais que não poderão realizar com totalidade o ofício da medicina.





Além de tais questionamentos citados, o programa "Mais Médicos" suscitou no Brasil, entre a população e os profissionais da medicina, discussão sobre a efetivação do programa visto que, prioritariamente, médicos brasileiros seriam contratados para o programa e na ausência de inscritos, vagas para médicos estrangeiros seriam disponibilizadas. A formação acadêmica dos profissionais, principalmente cubanos, foi questionada, visto que a categoria de médicos do Brasil consideram a formação intelectual daqueles, inadequada à realidade brasileira. Em contraponto, os médicos brasileiros não aceitam trabalhar em regiões precárias e por uma remuneração que consideram inferior ao nível de conhecimento que definem ter.




O número de médicos brasileiros inscritos no programa foi inferior ao desejado, de forma que médicos estrangeiros, como esperado, foram contratados para regiões brasileiras esquecidas, carentes, que médicos brasileiros consideram precárias, saturadas de problemas e com remuneração e estrutura inviáveis para exercerem a profissão, visto que nos grandes centros e metrópoles, trabalham por boa remuneração, qualidade de vida e acesso. O fato é que a maioria da categoria não aceitou participar do programa, mas não aceitam, também, que médicos estrangeiros exerçam a medicina no país. Quem perde, o médico brasileiro? O médico estrangeiro? Não. Nenhum dos dois. Quem perde é a população que quer saúde, quer ser atendida e necessita de auxílio, de forma que a inserção de mais médicos, mesmo não sendo brasileiros, foi positiva ao sistema de saúde do país, mas, claro, deve ser acompanhada de uma mudança na infraestrutura e atendimento geral no sistema de saúde.





O fato, também, é que os médicos estrangeiros aceitaram trabalhar por uma remuneração considerada inaceitável pelos médicos brasileiros e tornaram-se mão de obra barata para o Governo, que estão aproveitando da necessidade desses estrangeiros para gastarem pouco e, ainda, afirmarem que estão fornecendo saúde completa e precisa. Os cubanos, por exemplo, ganham pouquíssimo, trabalham muito e grande parte de sua remuneração é mais para seu país, Cuba, do que para eles mesmos. Estão trabalhando mais pela esperança deste dinheiro ser aplicado em Cuba, para melhoria de toda nação, do que imbuídos pela necessidade de "fazer riqueza" que, aqui, não vão fazer. Devemos ter mais respeito por estes profissionais e não desprezo, não agressividade, como tem sido publicada pelas mídias na recepção deles; e os médicos brasileiros deveriam ter mais educação e consciência de que se não acham viável trabalharem pelo que consideram "pouco", não devem impedir milhões de brasileiros de serem assistidos. Como profissionais que formaram-se para curar e auxiliar, devem colocar, como no velho juramento do grande Hipócrates, o ser humano como prioridade. Conscientes que estes brasileiros devem ser assistidos, seja pelo profissional de qual língua for. Devem ser tratados, respeitados, terem, afinal, dignidade de vida humana.




Que o preciso programa "Mais Médicos" não se restrinja em seu título, tornando-se isso mesmo, apenas mais médicos contratados pelo país, mas seja um projeto visionário que contrate bons profissionais para trabalharem num sistema de saúde equipado e preparado para atender e tratar à população. É necessário mais médicos, mas é primordial infraestrutura para esses médicos, estrangeiros ou brasileiros, trabalharem, a fim de que realizem com amplitude suas funções, afinal, o que adianta prescritores, sem as ferramentas para aplicar os tratamentos? A mudança deve ser global, aniquilando a falta de assistência do Governo, ampliando e trabalhando para melhor formação dos profissionais de saúde e modificando a tramitação do profissional médico, para ele ser mais nômade, levando seu trabalho e conhecimento para todas as localidades e não só para grandes centros e elite, transformando o programa "Mais Médicos" no que deve realmente ser: "Mais Saúde".








quarta-feira, 19 de junho de 2013

Manifestações Contra a Copa: A Coerência da Reforma Social Mediante Métodos Irascíveis.





  " Imagens de manifestantes, por todo país, reivindicando o absurdo dos investimentos revertidos à copa, em detrimento de necessárias melhorias em diversos setores sociais".
                                    



O investimento excedente e inapropriado que o Brasil utilizou para a realização da "Copa das Confederações" e posterior "Copa do Mundo" suscitou no povo, em sua maioria, revolta e indignação diante projeto que encaminhou soma considerável do dinheiro público para uma empreitada que não oferece ou condiciona nenhum tipo de melhoria para a saúde, educação, segurança pública e todos os demais setores da sociedade, essenciais para a regulação e mantimento da dignidade de vida humana. O povo, movido por profunda indignação, decidiu usar sua voz, opinião e força para mostrar para a gestão atual que não compactuam com a ideia de transferir nossos impostos, frutos de muito trabalho, para um evento que de nada adiantará para formação de uma sociedade assistida, completa e baseada na justiça social. As constantes manifestações que estão ocorrendo por todos os espaços do Brasil foram fundamentadas na necessidade de apresentar ao governo que há brasileiros conscientes, sóbrios das nossas reais carências. Junto a indignação da realização das copas, outras reivindicações, também, foram incluídas nas manifestações, a fim de solicitar direitos em outras áreas e funções sociais.





As manifestações, de fato, surgiram com a genuína necessidade de mudança social. Surgiu com a vontade de brasileiros sensatos e racionais desmistificarem essa medíocre ideia de "País do Futebol", como se tal menção fosse enriquecer ou colocar o Brasil em patamar de superioridade ou subtrair as crises sociais que enfrentamos diariamente. Infelizmente, as manifestações, que deveriam ser sumamente baseadas em diálogos, opiniões e ordem, estão se tornando um evento de puro vandalismo, criminalidade e desgastes sociais. Como pedir paz, fazendo guerra? De que maneira o vandalismo, a destruição de imóveis, edificações e locais públicos, contribuirão para mostrar à atual gestão a nossa discordância à corrupção, aos gastos com a copa e a falta de estrutura social para sermos assistidos, auxiliados e respeitados? Não há como. O retrato, na verdade, está demonstrando um povo ainda despreparado para lutar por mudanças sociais, que está tão cansado, que utiliza-se da força física para solicitar uma forma de vida que já não suporta mais não ter: estabilidade. Nesse panorama até a classe alta, principal comparsa na desigualdade e má distribuição de renda, se mostra favorável a mudanças que, por esforço próprio, nunca fizeram. Artistas, aproveitando dos holofotes, postam em seus sites de relacionamento menções sobre a manifestação, como se estivessem contribuindo para reforma social do país, com simples postagens e dizeres. As manifestações, inicialmente politizadas e agregadoras, tornaram-se um circo de hipocrisia e alienação. 





O fato é que o principal motivo que desencadeou as manifestações foi a incoerência de um país de fragilidades sociais, carente em todos os seus setores, e necessitado de investimento e melhorias, receber um evento que causa mais prejuízos do que benefícios. O esporte, obviamente, é importante para o desenvolvimento saudável do indivíduo, mas não posso concordar que exista algum benefício social, político e educacional do esporte na vida da sociedade como um todo. A idolatração em torno do futebol, no Brasil, tornou-se um fator negativo para nossa emancipação enquanto país em desenvolvimento. Que cidadão racional poderá concordar com a renda absurda que é revestida ao futebol e a jogadores, enquanto cientistas, professores e trabalhadores de diversos setores sociais, vivem com renda precária e desprestígio social? Vivem, na verdade, motivados mais pela paixão pela ciência, pelo educar e melhorar do que visando uma estrutura de vida de qualidade material e social. O dinheiro investido para melhorar e equipar estágios, proporcionaram a amarga sensação da construção de escolas, hospitais, centros de estudos... E, ainda, os cidadãos de classe baixa, apesar de terem financiado a inútil construção desta superficialidade moderna, em sua maioria, não poderão sequer custear os ingressos para assistirem os jogos, pois o valor dos ingressos selecionaram a classe média e alta como espectadores. 





Além da incoerência do Brasil receber as copas, as mídias sociais frequentemente explanam uma preocupação leviana e vulgar: como iremos receber os estrangeiros? O Brasil está preparado para recepcionar estrangeiros, sendo este país de índio? Brasileiros de formação alienada, desvalorização social e preocupados não com os malefícios das copas, com tanto dinheiro investido na conquista de um título, mas em não "fazer feio" para estrangeiro. Um jornal de renome nacional, tem como pauta a copa e a qualidade do setor de turismo para recepcionar europeus e afins. A imprensa, que deveria informar criticamente e elucidar a situação como um todo, restringiu seu papel em mostrar as futilidades de uma elite alienada e tola, que insiste em marginalizar e segregar seres humanos. Apesar de tantos transtornos, erros, manifestações, hipocrisias e opiniões insensatas de pessoas que pouco colaboram para o desenvolvimento positivo do país, há um fator extremamente importante e positivo nesses movimentos: o desejo de reforma. Reforma social, política, educacional. Reforma do próprio método do formação individual e coletivo. O caminho, ainda, está "torto", mas não quer dizer que nós, como povo, não estamos nutrindo o principal princípio de reforma social: vontade. E é essa vontade de mudar que proporcionará novos caminhos, definições e conscientização do que seja coerente enquanto indivíduos e coletivos. Que essa vontade inicie um processo de mudança, transformando o país do futebol em um país de igualdade e justiça social. Pois este, sim, é o título que temos que carregar com orgulho e admiração.





domingo, 17 de março de 2013

O Espelho de Alice.





                                             Garota no Espelho, 1954,  
                                            Norman Rockwell.



Próximo à janela, um espelho de tamanho mediano e caracteres antigos demonstrava a imagem estranhamente nova daquele rosto que o mundo ainda definia como jovem, mas que sua dona o via impregnado de marcas, achados e experiências não vividas na prática, mas sentidas com a intensa paixão dos passionais, dos que temem os passos com medo da desilusão. Tantos dias passados, horas esperando e rostos vistos e prontamente arquivados como dias que já não fazem parte da realidade, tornando-se, em fração de segundos, em imagens para se lembrar e não esperar. Um espelho tão mediano, tão pequeno que mostrava os anos acabados, os impactos deixados e as marcas físicas do corpo da jovem Alice, que, aos poucos, dava adeus à juventude; medrosa de não tê-la vivido, amado e sentido com a plenitude de ser viva, jovem e aberta a cometer muitos erros e poucos e medíocres acertos. Seus olhos já não mais brilhavam e seu corpo se aproximava da velhice. Teve trabalho, tristeza, buscas, alegrias e dilemas sempre a lhe maltratar. Na sua pele de moça, foi reflexiva, medrosa e ansiosa pela espera do novo, diferente, do convidativo e da ideia da realização pós-juventude. A realização de ter visto, vivido e sentido de tudo um pouco, visando fornecer à sua nova jovem velhice a sensação de prazer, a fim de enganar a tristeza de que a vida passa, mas com tanta experiência adquirida, nunca será uma fonte de lamentação (não houve desperdícios).








De pés descalços, pele levemente enrugada e sonhos ainda a serem realizados, Alice, tão jovem e sentindo-se tão velha, insistia em deixar sua face naquele espelho velho, que não mentia, iludia e não amenizava novas e velhas verdades. Uma jovem tão enigmática e estranha que aos poucos fora conceituada pela sociedade como idiossincrática. A jovem velha observou, com tamanha perplexidade, que todos os sentimentos, sonhos e desejos da sua juventude foram embora, sem precisão, sem justificativa e consideração por ela, como se fossem amigos de longa data que mudaram-se para outro continente, sem ao menos deixar endereço ou qualquer localização. Mas, de todas as formas existentes de sentir, apenas uma ficou a lhe acompanhar: o medo. Medo de ter feito pouco, medo do amanhã, medo da insegurança da vida física e de sentir o amor tão próximo que a decisão de mandá-lo embora parece ser mais segura do que o medo de vê-lo partir todos os seus (ainda) poucos sonhos e ideais. Alice, perto de sua dita velhice, continuava a se olhar no espelho, questionado sua pequena vida, seus feitos e afazeres e se, dentro de tanta mediocridade, chegara perto de realizar algum projeto significativo, abraçou alguém com verdade e se teve a oportunidade de ser melhor, bondosa ou até mesmo esperançosa de dias melhores para si e para o mundo.








Mas, por mais que continuasse a se olhar e refletir o seu breve e improdutivo passado, nas reminiscências de sua alma, não conseguia visualizar nenhum dado que confirmasse suas indagações sobre seu próprio mundo interior. Seu espelho, tão encantadoramente clássico e antigo, insistia em lhe mostrar o único sentimento que governava sua vida: o medo de ter feito de sua própria vida, um grande boneco de fantoche manipulado pelo mundo, que movia-se quando os outros queriam, sentia quando era necessário e desejava tudo o que já fora planejado; não nascido de sua vontade de ser, ter e viver. Alice, perto de sua velhice, descobrira algo que poucos conseguiam entender antes de transitar por qualquer fase: que não exisitia nada novo, os conhecimentos eram sempre os mesmos, os padrões morais frutos da ignorância dos homens e que seus próprios sonhos eram produtos sociais de um sistema capitalista. Profissão, união, trabalho e todas as atividades exercidas, não passavam de tarefas impensadas, decoradas e formuladas para o funcionamento coletivo do mundo.








De todas as ilusões, nada era mais cruel e penetrante do que o fato de ser pouco no mundo. Uma protagonista sem ter participado de nenhum ato. Como era revelador aquele espelho, tão objetivo e preciso em suas verdades. Na verdade de mostrar os segredos daquela face da jovem velha Alice. Alice, tão velha sempre fora, nunca aceitara ser jovem, por isso, chegar à sua velhice não era mais novidade, mas apenas uma extensão do próprio ato de ser no mundo (a escolha que fizera desde o momento que entendeu que tinha uma vida e o que deveria fazer com ela). De tanto pensar, mal percebera que o sol já tinha se guardado para a outra parte do globo e que à noite havia chegado. Acendeu à luz, tornou-se a se olhar, questionou o mundo, tudo e cada observar. Nada lhe foi dito; somente marcas novas no rosto, seus olhos sem brilhar e um corpo que revelava que a vida passava aos poucos, mas não deixava de avisar os tempos perdidos, passados e todos os erros de uma história. Já cansada, levantou-se para outras tarefas realizar, arrumou seu espelho na parede, abriu a porta do seu quarto e, ao voltar seu rosto na esperança de alguma resposta, seu espelho refletiu sua imagem mais uma vez, deixando na jovem Alice a grande indagação de sua jovem velhice: "será que vivi tudo e certo?". Ao fechar a porta, apenas um espelho mediano de caracteres antigos iluminava o quarto.









segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Xingu: Um Brasil Preservado.




                                                          Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas.

"Andar por terras que ninguém andou, chegar em lugares em que o branco nunca chegou. Porque não há nenhum lugar que o branco não chegue, chegar antes foi tudo o que pude fazer”



Em meio a expectativas, sonhos, ideais, locais longínquos e um imenso espaço geográfico a ser mapeado e desbravado, partiram os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas, na década de 40, para o oeste do Brasil. Estimulados pelo projeto "Marcha para o Oeste", do então presidente Getúlio Vargas, os irmãos enveredaram por uma bela aventura que modificou significativamente suas vidas e valores, tranformando-os em indivíduos que traçaram um novo patamar na história do Brasil e protetores de uma cultura pouco valorizada, buscada e definida com relevância para a história do desenvolvimento do povo brasileiro: a indígena. Movidos pela paixão e desejosos de inovarem suas vidas, histórias e encontrar o novo, os tão jovens rapazes se integraram na expedição de natureza política cujo objetivo era, entre outros, descobrir o oeste brasileiro, dominá-lo, habitá-lo e desenvolver o que poderia ser futuramente uma das regiões prósperas do Brasil, criando novas formas de mercantilismos, mapeando o desconhecido e cientificando ao regime político a dimensão de suas posses, seu patrimônio e qual era a estrutura dessa parte pouco perscrutada e não encontrada nos mapas, livros e na história do país.







Imbuídos pela sagacidade pelo novo e movidos pelo genuíno desejo jovem de experimentarem a vida e descobrir novos mundos (dentro e fora de si), os irmãos Villas-Bôas partiram por esta extensa faixa de terra brasileira, enfrentando todas as intempéries das matas, colocando-se junto de seus companheiros em posição de perigo, de exaustão e de precariedade para viver o que parecia ser uma opção de vida investigativa e nova, deixando para trás todas as expectativas de uma vida urbana de hábitos, carreira, status e mediocridades diversas, nascidas dentro do que se conceitua riqueza, elegância e necessidade social. Encontraram um novo mundo dentro daquele montante de fauna, flora e terra que acreditava-se ser vazia e, portanto, pronta para ser industrializada e servir o capitalismo, sempre urgente. Encontraram, na verdade, gente, com padrão de vida absolutamente adaptado para aquela vida na floresta (aparentemente impossível aos olhos urbanos), aglomeradas em famílias, com sistema de sobrevivência e manutenção já estabelecidos para vida indígena; encontraram índios, vivendo em aldeias, sobreviventes dos mecanismos variáveis e rígidos das matas, com uma filosofia de vida e padrão cultural rico, admirável e sábio para uma sociedade urbanizada que baseia toda sua cultura no letramento e materialismo.

                                                                      Xingu




A expedição, formulada por objetivos políticos, propiciou uma espécie de redescobrimento do Brasil, mostrando a toda nação as peculiaridades e variedades existentes neste espaço territorialmente extenso em terra, mas também em cultura, arte e diversidade. Mas mesmo diante aspectos tão ricos e evidentemente solicitantes de preservação, o regime político vigente, não definiu por bem deixar tanta área "inutilizada", sem "fazer dinheiro", alavancar o comércio, rentabilidade e estabelecer novas fontes de aproveitamento de tanta área virgem, exposta e habitada apenas por ditos primitivos, iletrados, portanto, indignos de decidirem seus destinos e permanecerem em área oficialmente brasileira. Dentro deste contexto, onde a política vigente tinha objetivos contrários aos de preservação do povo indígena, os irmãos Villas-Bôas foram os principais defensores da preservação indígena, unindo os índios de várias etnias e propondo um modelo de preservação que proporcionasse uma área restrita aos índios; a criação de uma espécie de "cidade de índios", onde os mesmos pudessem ser preservados, dar continuidade as suas vidas (sem interferência do homem branco) e viver de acordo com sua cultura, saber e integração com a natureza.








Por tantas lutas, ideias, ideais, buscas e propostas para a manutenção, preservação e respeito a cultura indígena, os irmãos Villas-Bôas foram os principais responsáveis, idealizadores e sonhadores do "Parque Indígena do Xingu" (apesar de tantos outros nomes conhecidos e não conhecidos que estiveram unidos pela causa). Criado em 1961, o "Parque Indígena do Xingu", concretizou a busca dos irmãos em preservar uma cultura despreparada para viver com o homem branco e a luta para não aniquilar a cultura indígena, enraizada e vasta, que não deveria ser dissolvida na comunidade branca só por ser diferente ou considerada imprópria. A voz dos irmãos Villas-Bôas e a importância da mensagem que levaram foram tão relevantes e necessárias que a sociedade brasileira despertou para uma nova consciência, mais humana, ampla e sábia, resultando no surgimento de organismos de preservação indígena, na criação, em 1967, da FUNAI (Fundação Nacional do índio) e na interação do homem branco com o índio, sem que para isso fosse necessário agredir e permear na cultura indígena de forma violenta, subtrair seus saberes e modificar toda a estrutura criada desde tempos imemoráveis. 



                                                       



Orlando, Cláudio e Leonardo (este morreu precocemente, tendo abandonado o Xingu antes de seus irmãos), apesar de muito jovens, iniciaram um trabalho humano, rico, generoso e de natureza social-política-cultural que permanecerá por muitos anos, pois a luta ainda é urgente, o descaso com as causas indígenas continua a ser atual e o modelo de preservação elaborado pelos irmãos, apesar de eficiente e eminente, ainda precisa ser efetivado e conservado pelas próximas gerações; tanto que até na dita eminente Constituição da República, que supostamente rege a igualdade e fraternidade ao povo brasileiro, é possível identificar uma permissão restrita aos legisladores definida como coerente, mas absolutamente corruptível ao ser analisada:


"Autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas mineirais" Artigo 49, XVI



Na nossa atual realidade ambiental, na qual toda preservação e conservação dos recursos naturais se faz urgente para manutenção e sobrevivência da própria espécie humana e diante a crítica proteção à cultura indígena propiciada pela sociedade, torna-se uma contradição o citado artigo, no qual confere permissividade em demasia no uso dos recursos naturais, nas quais poucas cabeças do Congresso Nacional (que vem cada vez mais enraizando seu descrédito com o povo) tem o poder de decidir ação tão relevante e com efeito devastador ao meio ambiente, ao povo e a toda vida terrestre.






O projeto Xingu, tão perfeitamente criado pelos irmãos Villas-Bôas, ensinou ao Brasil e ao mundo que é possível preservar e auxiliar na manutenção de um modelo de preservação ideal e adequado para as necessidades do mundo. O índio, dito tão primitivo e ingnorante, tem como modelo de vida o exemplo essencial para as tantas outras comunidades do mundo. Ele usa, mas não abusa, mantém sua monocultura por tempo adequado, não agredindo em demasia o solo, não consome (em abundância) os supérfluos criados pela tecnologia, moda e produtos que, apesar de ditos necessários, se não usados, não coloca o homem em situação de risco. O índio respeita a natureza, a louva e é consciente de que existe por ela. É parte dela.






"Xingu", maravilha cinematográfica produzida por este país sem grande prestígio na sétima arte, trouxe aos brasileiros a história, mérito, luta e as conquistas dos irmãos Villas-Bôas que em busca pela "Marcha Para o Oeste" decidiram optar pela luta pela humanismo, vinculando a terra ao homem e criando meios para que a vasta população indígena, com sua rica cultura, fosse preservada e mantida dentro de sua própria fronteira, dentro de um lugar para chamar de seu, pertencente ao povo. Toda entrega dos irmãos Villas-Bôas, que doaram toda sua força de trabalho, pensamento e vida para o trabalho eminente das questões indígenas deveria ser matéria de escola, introduzida com mais veemência nas páginas dos livros de história e discutida com o heroísmo que o caso pede, pois a disponibilidade dos irmãos em viverem mais de quarenta anos em função da padronização e efetivação do modelo idealizado por eles para preservar o Xingu, manifestou o caráter virtuoso e forte destes homens, trazendo fé aos cidadãos de que é possível uma mudança eficaz e equilibrada para solucionar questões tão conflitantes, pois além da preservação ambiental e indígena, os irmãos Villas-Bôas lutaram, acima de tudo, pelos direitos humanos, concebendo o homem como elemento a ser respeitado por toda humanidade; a ter sua integridade garantida acima de qualquer interesse que não seja a conservação e direito à vida, realizando uma obra ampla e louvável de preservação ambiental, cultural e humana.








sábado, 10 de novembro de 2012

Formação Técnica e Formação Humana.




                                    Operários, Tarsila do Amaral - 1933



A quantidade adquirida de informação técnica e específica para formação de cada profissional, tornou-se a principal e mais pertinentemente característica requisitada para definir um profissional como preparado e extremamente habilidoso para realizar as funções atribuídas ao seu ofício que, no setor público ou privado, prestam serviços para população, confirmando, em absoluto, que a contemporaneidade forma um aglomerado de trabalhadores aptos a decorar, compreender o sistema e mecanicamente repetir as funções que a eles são designadas, mas nem sempre refleti-las e analisá-las para melhores avaliações e construção de novos parâmetros e novas formas e métodos de desenvolvimento profissional. A atual estrutura educacional preocupa-se com a formação de dados, que prepara tecnicamente, através de estudos, graduação, pós-graduação, cursinhos e vários cursos de aprimoramento, bons professores, médicos, promotores, advogados, cozinheiros, licenciados, bacharéis, etc., mas não oferece uma formação plenamente humana e racional. Tal fato pode ser absolutamente observado na multiplicação das unidades de cursos preparatórios para concursos e carreiras dispersados pelo país, na qual os estudantes recebem diariamente grande formação intelectual "decorativa", compreendendo como se estrutura a prova, sua forma objetiva, subjetiva, interpretativa, mas não se aprofundam na função social da carreira escolhida, sua ação, efeito e transformação a nível individual, coletivo e até mesmo pessoal.








As dificuldades existentes atualmente para atuação profissional, muitas vezes, se inicia para o profissional nos critérios de avaliação no início de carreira. Quando a sociedade solicita ao profissional respostas feitas e decoradas, a avaliação objetiva e subjetiva torna-se algo simplório para cada mente que fora habilitada para realização do feito, do prático; mas quando é exigido do profissional uma entrevista clara, solicitando a sintetização de informações pessoais, técnicas e humanas, logo ele se perde, acreditando que dominado pela ansiedade, aniquilou a perspectiva de contrato e de oportunidade de carreira, mas, mais que a ansiedade, é falta de conhecimento humano sobre a mente, as pessoas e a sociedade que limitam os indivíduos para atender, entender, somar e transcender os limites estabelecidos por cada área de trabalho. Tal observação, pode ser comprovada pela avaliação textual que, quando requisitada, é considerada a parte mais complexa da prova, visto que o texto é criação íntima, nova e totalmente original. Um produto nascido na hora. Um produto novo. Uma avaliação que não pode ser decorada, mas explanada de acordo com o pensar do indivíduo. A formação técnica comumente vem sendo aplicada em todos os setores e funções sociais, em decorrência deste fato, há muitos médicos aptos a realizarem notáveis diagnósticos e prognósticos, que destrincham ao paciente sobre patologias e seus efeitos, mas, entretanto, profissionais totalmente vazios e despreparados para dialogar com o paciente, compreender seus medos, anseios e impossibilitados de fornecerem um tratamento, acima de ser técnico, extremamente humano e eficaz; observamos, também, profissionais do Direito argumentarem sobre justiça sempre baseada em alguma lei, defender a importância das leis, mas, quando não há leis e artigos para se protegerem, as palavras tornam-se sem sentido e a justiça, impregnada em artigos e incisos, torna-se tão técnica que fica retida no livro e não no humano, resultando que muitos cargos públicos sejam administrados por indivíduos formados por cursos, regras e literatura extensiva, mas não humana, reflexiva e convidativa a adaptar novos programas solidários e inteligentes ao coletivo.







Observamos, também, professores limitados aos conceitos de formação intelectual, tendo que lutar contra o tempo, ou melhor, meros quatros bimestres, para lecionarem todas as matérias, narrar todo conteúdo que "vai cair na prova" que, infelizmente, são desprezados pelos próprios educandos quando, ao terminarem a avaliação, liberam o cérebro de retê-la como conhecimento, desgastados pela formação mecanicista e decorativa fornecida pelas instituições educacionais. Seja em qualquer das três grandes áreas de atuação: humanas, extatas e saúde, a educação forma-se continuamente em um emaranhado de informações técnicas, que nos preparam para carreiras que, como todas, são extremamente necessárias e primordiais para manutenção e funcionamento do Estado, mas sem qualquer habilidade superior a conceitos, regras e argumentos. Como resultado, há profissionais medíocres, definidos como excelentes profissionais, orgulhando-se por arquivarem tanto conhecimento; tanto que em paralelo há outros profissionais sentem-se vaidosos e diferenciados, conceituando-se como doutores ou doutoras, como chefes aptos e profissionais valorizados, mas com o padrão humano e social totalmente escasso e medíocre, que os impossibilitam  enxergar além dos números, dados e cientificações; os impossibilitam de criar, recriar e gerir o novo, o humanizado e usar sua racionalidade para projetar o que cada área de trabalho pode fornecer a população (muito mais que serviços burocráticos e temas decorados).







Trabalhar para que a formação intelectual seja integralmente humana, não é descaracterizar a técnica, a desprezando em um patamar inferior ou longínquo, mas fazer com que dados técnicos, ao invés de serem sistematizados e decorados, sejam, também, pensados e questionados sobre sua eficácia e igualdade no atendimento ao coletivo. É trabalhar para que professores sejam pensadores e propagadores do conhecimento e não máquinas de repetição de conceitos, que advogados e promotores sejam analistas da justiça, não a limitando em um artigo, mas sabendo dispersá-la para todo o povo, o atendendo com integridade e em consonância com a igualdade, justiça e fraternidade, e não evidenciando a carreira por uma indumentária, linguajar gramaticalmente formal e definindo títulos como qualidades e confirmação profissional. Enquanto não nos transformamos para a real preparação profissional: técnica, humana, reflexiva e solidária, sem vaidades pessoais em seu ofício, ainda continuaremos a ver essa excedente quantidade de profissionais formados, totalmente técnicos e mecanicistas que, durante sua formação intelectual, frequentam cursos, decoram termos, repetem as habilidades necessárias para realização de cada ofício, mas não conseguem penetrar na razão humana, no pensar aguçado e na arte de criar e determinar novas fórmulas, aspectos, programas, ensinos e proporcionar novas fontes de conhecimento para o cidadão e o mundo. Nesse sentido, se faz necessário a criação de um novo entendimento do que seja trabalho e seu real valor na sociedade, formulando um tipo de formação meramente técnica, mas plenamente reflexiva, questionável e investigadora do novo, do produtivo e transfomador, a fim de aniquilar a ideia perniciosa e pobre do que seja ser um profissional, do que seja a razão de cada profissão e, assim, criar o benéfico, atuante, pensador e transformador profissional moderno: que humaniza a educação técnica e sabe que o verdadeiro conhecimento é sempre uma busca e nunca a determinação de ideias decoradas e estagnadas na percepção nula de todas as coisas.







segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Gabriela, Cravo e Canela: Uma Crônica de Ilhéus.









De pés descalços, cansados, corpo castigado e terra a lhe cobrir, caminha Gabriela, ainda sem cheiro de cravo e cor de canela a lhe expor. Retirante, fugida dos sofrimentos da seca e da dor da pobreza, busca sólido fértil para viver, comer e poder conhecer o sossego; o sossego dos que nunca experimentaram privações. Destino: cidade de Ilhéus; terra em ascensão, de economia baseada no cacau, coronéis tiranos e habitado por pessoas características, típicas, marcadas pela realidade local. "Gabriela, Cravo e Canela", de Jorge Amado, esclareceu minhas indagações sobre o porquê da paixão brasileira (e mundial) por este escritor baiano, de letras bonitas e histórias sensacionais. Não há como não gostar do autor. Em Gabriela ele convida o leitor a fazer uma viagem pela Bahia dos anos 20, em que a política era coronelista, os fuxicos uma rotina comum e a hierarquia social uma lei a ser cumprida, sempre mantendo a mulher como matéria a ser usada, de diferentes formas, mas disfarçadas sob personagens caracterizadas como moral e imoral.







Assim nasceu Gabriela, como mesmo define o autor, protagonizando crônicas de histórias da cidade de Ilhéus, desdobrando inúmeros personagens peculiares e singulares que apresentaram aspectos interioranos e a estrutura da sociedade da época. Gabriela, retirante, sertaneja e muito bela, era dona de talentos gastronômicos, executando com propriedade as receitas mais desejadas da picante culinária baiana. Gabriela, sem estudos ou ciências, tinha o único conhecimento que o turco Nacib (comerciante e bom amigo) buscava: uma boa cozinheira. Assim nasce o amor de Nacib e Gabriela, uma mistura de desejo, ânsia, comida e sensualidade que envolve Gabriela e seu Moço Bonito, seu Nacib. Em paralelo a este inusitado relacionamento entre a sertaneja faceira, bonita e desprendida, com um homem não tão rico, mas de sociedade, a vida se movimenta na sociedade de Ilhéus. Coronéis, padres, beatas, mulatas, jagunços, quengas, moças a se prepararem para o matrimônio e regras a serem cumpridas por tudo e todos definem o dia-a-dia da cidade.


      Ilustração de Gabriela, inserida no cenário de principal atividade econômica da Bahia dos anos 20: a cultura do cacau.




Gabriela, com sua sensualidade latejante e determinante de sua personalidade, objeto de desejo sexual de homens da cidade, não fora criada para ater-se em limites, aliás, nem mesmo fora criada, vontade era seu nome; se sente, faz, se quer, realiza, não mensurando se tais atitudes são maléficas a si e ao outro. Gabriela é distante dos padrões morais dos demais personagens, não sendo imoral nem moral, mas amoral, acima de convenções de determinismos sociais. Liberdade é o que deseja e, se sente vontade de namorar com o Moço Bonito, - seja ele quem for - , que mal há? Afinal, gosta tanto. Nacib teme perdê-la, pressente que ela não nascera para ter dono, mesmo tentanto comprá-la perante cartório, padre e a transformando numa dama de sociedade. Como todo bicho selvagem, seus sonhos são distantes dos domesticados e sua toca, torna-se aos poucos, sua verdadeira prisão. Com o desenvolvimento da vida de Gabriela, são narrados os demais personagens criados para à obra. Mundinho Falcão, disfarçando-se pela vestimenta de progresso, modernidade e diretor de uma "Nova Ilhéus", só deseja apossar-se da cidade, não derramando sangue e organizando expedições de guerra e violência, mas armado de uma política filosófica, sedutora, mas que no fim, era determinada meramente por ele. Diferencia-se de Coronel Ramiro pelos seus modos, educação e por fazer da política uma ciência, não uma chacina.



                               Ilustração da Cidade de Ilhéus por Maurício Melo.



A inserção de Mundinho Falcão na trama encaminha, aos poucos, a uma nova formação social, política e cultural de Ilhéus. Costumes, antes tão defendidos como o assassinato de esposas infiéis, são revistos e definidos como atrocidades e ação criminal, dignos de repreensão e punição legal. A mulher, cuja única função era procriar e ser corpo para cópula, seja como fiel e oprimida dona de casa ou como salutar quenga, que poderia dispor-se aos desejos diversos dos coronéis, é diferenciada por um único papel na narrativa, a inteligente e moderna Malvina, filha do coronel Melk, que nutria dentro de si a revolucionária vontade de ser dona de seu próprio destino. Malvina, diferente das santas ou quengas, queria escolher seu marido, poder trabalhar como todos os homens e não no ofício de dispor seu corpo aos desejos alheios, mas desempenhar atividades coerentes à sua preparação intelectual. Uma verdadeira missionária entre mentes que aprisionavam mulheres somente para o lar, ou encurralavam elas para a prostituição, não fornecendo outros meios de subsistência a mulheres pobres e definidas como "perdidas".






"Gabriela, Cravo e Canela" é, além de uma crônica registrada dos personagens da cidade de Ilhéus, uma narrativa gostosa de se ler, com um linguajar que personifica cada habitante, destrinchando a cultura local, seus hábitos, conflitos, sonhos e suas medíocres rotinas, de mexericos, difamações, de excessivo alimentar e fiéis a cristandade - mas não a ponto de afetar os interesses da carne e do bolso. "O Bataclã", principal bordel da cidade, recebe todas as noites os homens da cidade, solteiros, casados, ricos, pobres, de alta ou baixa sociedade, quem podia pagar e comprar pelo lazer definido pelos homens e pelas suas próprias mulheres como necessidade do homem comum. Tal comportamento, exemplifica a mentalidade e moral da mulher da época, que era educada para aceitar, servir e cuidar da família que o homem formava, mas que a ela não pertencia. Era, no seu íntimo, portadora de um pequeno papel que, em troca de proteção, comida e a dita moral resguardada, tornava-se esposa e mãe dos papéis realmente atuantes: os homens.







Jorge Amado, não restringindo sua obra a um simples romance, desejou torná-la um pouco de tudo, como se estivesse a preparar uma boa comida baiana com todos os ingredientes disponíveis para saciar de várias maneiras o apetite de seus leitores. Através de sua Gabriela, um paradoxo de inocência, virtude, que causa tormentos e questionamentos diversos, é narrada as transformações de uma cidade, demonstrando sua fuga do arcaico ao caminho do moderno, através das mudanças ocorridas no setor político, social, cultural e de relacionamentos. Aos poucos, o novo quadro é formado, discutindo a emancipação feminina, a transição da política mandatária para a política de proposta, de diálogo e semelhante com a modernidade das capitais. No entanto, o que mais interessa ao leitor é a vida local, as pessoas, falas, personalidades, a riqueza de detalhes de cada elemento da trama e como ela critica e, ao mesmo tempo, diverte os leitores, encontrando eles não só uma forma de entreterimento, mas um panorama daquela realidade e como toda a estrutura social educava cada perfil social para viver de acordo com sua posição e classe.







Com tantas características e fusão de perfis diversos, a obra poderia sucumbir-se numa leitura acumulativa, onde muitos personagens e histórias fossem excessivos ao leitor, mas, contrariando as expectativas, à obra, muito aberta e "cheia",  tornou rico o propósito da trama: narrar toda Ilhéus, exemplificar sua gente e, ainda, compreender a fácil e complexa personalidade Gabriela, mulher cuja noção de felicidade não representava a idéia dos demais, que o amor deveria ser, do seu jeito, um livre sentir. Gabriela diferenciava da moça "pura" de sociedade, da quenga "devassa" que em sofrimento vivia a vida que podia e de todas as morais listadas na obra. Personagem tão singular, teve que carregar seu nome como título da obra, perpassando por ela toda cidade de Ilhéus, sua gente, seus dizeres, amores, desamores, dentro de uma história simples e agradável de uma pacata cidade que nos anos 20 viveu, de fato, muitas transformações sociais, servindo de pretexto para criação desta narrativa alegre e incomum, sob o olhar aguçado, divertido e criativo do grande Jorge Amado.